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A corrida de rua como experiência de lazer para pessoas de mais idade: Um estudo qualitativo no Rio de Janeiro


Um fenômeno recente que tem se destacado nos grandes centros urbanos é a crescente participação de homens e mulheres com mais de 50 anos em corridas de rua. Estas corridas são eventos sociais que mesclam atividade física com lazer e que, dependendo do interesse do participante, poderão proporcionar também experiência de turismo. Entre os diversos tipos de corridas existentes, a maratona é uma das mais desafiantes (42,195 km) e uma das principais que atrai este público. No mundo, chegam a ser realizadas mais de 500 maratonas por ano, entre elas as de Nova Iorque, Boston, Paris, Berlim e Tóquio. Há também algumas maratonas exóticas tais como a da China, com percurso sobre a Grande Muralha, e a maratona do Sol da Meia Noite na Noruega que acontece à noite sob a luz do sol. No Brasil, as principais são as maratonas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Acredita-se que a popularidade desses eventos sociais se deve à praticidade que a corrida oferece, como ser acessível a toda população com condicionamento adequado e, também, por ser uma atividade de baixo custo para quem participa (Salgado e Chacon-Mikahil, 2006). Com isto, é possível atingir corredores de diferentes idades e classes sociais, como pessoas acima de 50 anos.

O presente artigo busca compreender as motivações e as experiências vivenciadas por homens e mulheres acima de 50 anos que participam de corridas do tipo maratonas. Adota-se para esse objetivo a perspectiva de consumo de uma atividade que pode ser utilizada para conceber um produto de lazer e turismo.

 

A maratona como consumo de experiência

Atividades de lazer, esportes e jogos de diversão constituem importantes tipos de consumo de experiência. Este engloba aspectos multisensoriais, tais como as fantasias e emoções, e é conhecido na literatura como consumo hedônico (Holbrook e Hirschman, 1982). O consumo de experiência tem como característica o fato de que cada uma é única.

A maratona pode ser vista como uma experiência de consumo hedônico, pois envolve sensações de prazer e de diversão. Entretanto, também exige certa dose de sacrifícios, que, de acordo com sua intensidade, poderá até mesmo anular as sensações de prazer. Não obstante, cada maratona proporciona uma experiência única, seja por diferenças no percurso, no clima, no público que participa ou assiste ao evento, ou por diferenças que são inerentes ao próprio participante. No momento em que o corredor decide participar da maratona, ele se compromete a vivenciar experiências de corrida na forma de treinamento, a fim de atingir um condicionamento físico adequado. Os treinamentos envolvem situações de convívio social que não somente estimulam o conhecimento e o uso de produtos adequados à corrida, como influenciam na escolha ou sugestão de novos roteiros para locais de treinamento e de corridas.

A maratona, sendo assim um tipo de consumo de experiência, tem o consumidor como participante, logo sua presença é fundamental para o evento acontecer (Deighton, 1992). O consumidor é coprodutor da experiência de consumo. Quanto mais ajustada esta relação de coprodução, mais provavelmente novas experiências poderão surgir. Thomas et al. (2013) estudaram as interações entre os diversos agentes de uma comunidade de corredores, interações estas que em conjunto tornam possíveis as experiências de consumo de corridas. Estes agentes se dividem entre ofertadores da experiência (empresas responsáveis pelos eventos, patrocinadores, associações esportivas) e consumidores, sendo que alguns destes podem exercer dupla função, tanto como produtores e como consumidores destes serviços. Constata-se que dependência de recursos e alinhamento de interesses dos diferentes participantes contribuem para criação de valor, possibilitando a perpetuação da própria comunidade e, por conseguinte, a continuidade das ofertas de corridas.

O consumo de experiência detém um forte componente social. A interação pessoal é característica deste tipo de consumo, e pode estar presente em diferentes formas tais como a comunhão e a socialização (Holt, 1995). A comunhão acontece quando os consumidores compartilham suas experiências de consumo em conjunto. A socialização, por outro lado, se dá quando há troca de experiências entre os participantes, como por exemplo, um consumidor esclarece uma dúvida ou passa uma informação para outro consumidor (Holt,1995). Pesquisas como a de Celsi et al. (1993) e de Arnould e Price (1993) mostram em seus resultados a relevância do grupo na experiência de consumo para esportes como o skydiving e o rafting, respectivamente.

Estas características de interação social que o consumo de experiência oferece se adequam particularmente ao público de mais idade. Diniz e Motta (2006) ao realizarem uma pesquisa sobre restrições ao lazer para idosos, revelam que, com o avançar da idade, as pessoas tendem a valorizar mais a experiência em si do que o prazer de ter ou possuir. Especificam que para pessoas entre 60 e 80 anos, as preferências tendem a ser por relações interpessoais, por introspecção filosófica e maior conectividade com a vida. A escolha dos lugares para o convívio social perpassa a necessidade prática e funcional dos mesmos para ser um ambiente de socialização e de apoio emocional (Rosenbaum, 2006).

A participação em corridas de competição, como a maratona, representa uma oportunidade de interação social que exige alto grau de envolvimento e dedicação. No estudo de Shipway e Jones (2008), com corredores da maratona de Londres, verificou-se uma forte identidade de corredor. Os participantes consideram-se pertencentes ao mesmo grupo, dividindo as mesmas experiências, valores e crenças, criando uma «carreira» de corredor amador. A atividade corrida foi associada ao conceito «lazer sério» pelo alto grau de envolvimento e identidade compartilhada que oferece. O ato de viajar para competir na maratona contribuiu para exaltar a «identidade de corredor» dos participantes.

 

O envelhecimento e o esporte

Apesar do processo de envelhecimento ser algo natural e esperado para os indivíduos, este não é visto de forma simples. Para as autoridades públicas, tende a ser visto como fonte de preocupação, pois é necessário que se garanta as condições de saúde e de previdência da população. Associações entre velhice, período de incerteza e doenças acabam sendo inevitáveis (Guerra e Caldas, 2010). Mesmo que as condições de vida do idoso possam melhorar, o ser «velho» ainda segue certos estigmas. Tradicionalmente, a forma como a velhice é percebida se encontra relacionada ao declínio e perda das capacidades físicas e mentais.

Contudo, há também a perda social quando o idoso perde sua capacidade laborativa e entra na fase da aposentadoria (Guerra e Caldas, 2010). Para Barros (2011), a imagem do idoso se deteriora ainda mais quando é comparada à da juventude. As consequências disto são atitudes e comportamentos que alguns idosos procuram seguir para evitar serem considerados como velhos ou para simplesmente postergar esta fase em suas vidas (Pereira e Penalva, 2011).

Entretanto, com esta imagem negativa coexiste também uma imagem mais favorável ao envelhecimento, principalmente quando se consideram percepções feitas a partir dos próprios idosos. Guerra e Caldas (2010) fizeram um levantamento de vários estudos no Brasil que tratavam sobre a percepção dos idosos em relação ao envelhecimento. Constatou-se que há tantos relatos sobre dificuldades encontradas como também sobre recompensas, sendo estas a experiência, o conhecimento, a independência, presença de apoio e suporte familiar. Para os idosos pesquisados, há uma visão de que o envelhecimento é dependente do esforço e da responsabilidade pessoal de cada um e que a melhor forma de enfrentar é continuar ativo.

Nos últimos anos, tem estado mais presente na sociedade um discurso mais favorável em relação ao envelhecimento. O termo «terceira idade» surge para representar aquela fase da vida em que há maior liberdade, lazer, saúde e crescimento pessoal (Dionigi, 2006). A valorização da juventude, supracitada, é propulsora desta tendência, e a sociedade como um todo cria oportunidades para postergar o envelhecimento. Uma dessas iniciativas é através da atividade física A procura por atividade física pode ser vista como uma prática contra o envelhecimento (Caradec, 2011). Freitas et al. (2007) realizaram uma pesquisa em Recife com 120 idosos sobre os motivos para a prática de atividades físicas, e os resultados mostraram que os principais eram melhorar saúde, desempenho físico, autoimagem, autoestima, adotar estilo de vida saudável e reduzir o estresse.

Seguindo esta tendência de comportamento, observa-se também procura por atividades esportivas competitivas pelos idosos. Num estudo realizado na Austrália por Dionigi (2006) com idosos entre 60 e 89 anos, verificou-se que a prática de exercícios mais intensos, além de gerar maior envolvimento, permite a experimentação de certa forma de poder, uma vez que passam a ter maior controle sobre seus corpos e suas vidas. Como consequência, estes idosos admitem sentir momentos de prazer, de orgulho e de realização.

 

Método

Esta pesquisa é de caráter exploratório, visto que o tema corridas de rua ainda é escasso no meio acadêmico (Dallari, 2009; Moura et al., 2010). Como o objetivo desta pesquisa é identificar motivações e experiências vivenciadas ao correr uma maratona, adotou-se a linha de pesquisa interpretativa com uso do método qualitativo. O principal instrumento de coleta de dados utilizado foi entrevista em profundidade. Quando necessário, foram feitas consultas às publicações e sites na Internet relacionados ao tema corridas de rua.

Para a realização das entrevistas, foi adotada a técnica da bola de neve. Foram conduzidas 12 entrevistas em profundidade. Tal número se pautou pelo critério de saturação, em que cada vez mais novas informações pertinentes ao assunto da pesquisa estavam se tornando raras, ou que redundâncias tenham-se tornado frequentes. Cada entrevista teve duração média de quarenta minutos, todas gravadas (com permissão) e transcritas para análise. As entrevistas aconteceram num período de dois meses.

As perguntas fazem parte de um roteiro semi-estruturado. O que se pretendia obter dos informantes eram suas experiências com relação a maratona: sentimentos envolvidos, experiência vivida e significados.

As entrevistas aconteceram em locais públicos. A maior parte foi feita no local dos treinos de corridas: um bosque no bairro da Barra da Tijuca. Algumas entrevistas foram realizadas após o treino, momento este que foi sugerido pelos próprios entrevistados.

Todos os informantes eram residentes da cidade do Rio de Janeiro, exerciam diferentes profissões, eram praticantes de corrida e já haviam corrido pelo menos uma maratona. A idade média dos entrevistados era de 59 anos.

 

 

Todas as entrevistas começaram com a pergunta «Como você começou a correr‌». A finalidade era deixar o informante livre para dar informações sobre sua história de vida envolvendo a corrida. Depois, as perguntas passaram a discorrer sobre a maratona e a própria experiência de correr.

A análise dos dados da entrevista foi feita por blocos de texto. Utilizou-se a técnica da análise do discurso. Buscou-se categorizar a partir do levantamento dos principais temas relevantes dentro do tema relativo a corrida. Entretanto, a partir da leitura de todo o material, informações soltas, porém dignas de gerar mais riqueza para a própria pesquisa, foram igualmente consideradas.

A segunda fonte, dados secundários, foi consulta a publicações. Restringiu-se ao material editorial sobre eventos de corrida, mercado de corridas no Brasil e no exterior. Estas publicações, tanto na mídia tradicional como na mídia on-line, puderam contribuir para um melhor entendimento da evolução deste mercado de corridas de curta e de longa distância realizadas tanto por atletas profissionais como por amadores.

 

Análise dos resultados

Diversas foram as motivações que levaram os entrevistados a começarem a correr. Foram citadas motivações como: saúde, praticar uma atividade que já era comum na infância e influência de familiares. De todos aqueles que começaram a correr por razões ligadas à saúde, todos já estavam acima dos 30 anos, com a exceção de apenas um, que, apesar de mais jovem, estava preocupado com o peso corporal. Truccolo et al. (2008), ao estudarem os fatores motivacionais de adesão a grupos de corrida por corredores de Porto Alegre, também encontraram em seus entrevistados a motivação decorrente da busca de melhor condicionamento físico e saúde.

Enquanto para ingressar na atividade corrida as motivações foram variadas, para correr a prova maratona o motivo ficou em torno do desafio: «a maratona começou (a prática da maratona) porque você vai passando por obstáculos. Você corre 5 km, vê que você está bem, aí existe o desafio máximo que é a maratona.» (CAR., 70 anos).

Entretanto, uma possível motivação posterior, para além do desafio de vencer a distância, é melhorar o tempo de duração da prova. A questão do tempo da prova sempre esteve presente na entrevista como um fator de «classificação» entre os corredores. Pode-se considerar que talvez a motivação inicial seja o desafio, mas que, com o bom resultado da primeira experiência, a motivação posterior possa ser a competitividade, ou a melhora do tempo de conclusão da prova.

Por outro lado, o próprio avançar da idade também pode influenciar na motivação do indivíduo, como é visto pelo seguinte informante que começou a correr pelo desafio em si, mas que posteriormente passou a correr por motivo de saúde: «corro para não cansar» (C.P., 65 anos).

Para outros, o avançar da idade pode levar de uma experiência com motivação inicial competitiva para outra em busca da saúde: «estou com 70 anos, corridinhas só de 5 km para manter a forma e o bem-estar» (CAR., 70 anos, corredor que costumava disputar em sua categoria nas provas de longa distância).

A experiência maratona

Para os respondentes, participar de uma prova de maratona é um desafio, é também uma forma de testar os limites do corpo, de buscar superação, autoconhecimento e aventura. Como refere um entrevistado: «acho que tem um pouco dessa nossa loucura, que mora dentro de cada um, da gente se tentar desafiar de estar perto da morte, qualquer coisa assim, não sei, tem uma explicação muito sutil com relação a isso, você tem é uma grande aventura. A maratona em si é um desafio urbano (...) você está ali, num ambiente urbano e controlado.» (M.A., 49 anos).

Este desafio pode ser visto como uma forma de sacrifício. Há o sacrifício de tempo, como explica o informante: «estou numa fase que tenho que equilibrar família, trabalho e o meu esporte (...) tudo tem que caminhar junto» (M.D., 49 anos).

Há o sacrifício físico, pois a maratona é reconhecida por especialistas esportivos como atividade de esforço pesado (Pazin et al., 2008). Esta alta dose de esforço é tanto física quanto psíquica. É comum entre os participantes desta prova, definir que a partir de uma certa quilometragem existe uma barreira quase intransponível. Para os entrevistados, isso acontece, em geral, após os 30 km. É neste momento que o desafio se torna maior, e, que como consequência, necessita-se de maior empenho mental. Para os entrevistados, isto equivale a uma experiência que promove o autoconhecimento.

Como referem dois participantes:

«A maratona é um grande desafio. Acho que quando a pessoa procura a maratona, passa a ter mais o controle de si, não só o físico como o psicológico, porque a maratona é um grande desafio, é um grande desgaste, você se prepara muito. A maratona em si, a prova em si, é um grande desafio. Então você passa a se conhecer melhor a si próprio, não só fisicamente, mas também de cabeça. Eu acho que a pessoa passa a ser outra pessoa.» (J.C., 60 anos).

«Você na maratona pensa nesse diferencial lúdico, de ver um pouco da sua essência, descobrir um pouco da sua personalidade» (M.A., 49 anos).

Ao perguntar o que significa ser um maratonista, os entrevistados citaram palavras como «resistência», «pessoa determinada», «gozando de saúde», «herói», «boa cabeça», «explorar seus limites». Há uma imagem simbólica, um imaginário do corredor maratonista como uma pessoa resistente, saudável e que enfrenta desafios. Efetivamente, verifica-se que o corredor maratonista é valorizado na comunidade de corredores a ponto de para alguns só se considerar corredor «de verdade» aquele que corre maratonas. Refere um entrevistado: «o cara para dizer para mim que é corredor tem de fazer uma maratona, não importa o tempo» (V., 75 anos).

A construção deste imaginário do corredor maratonista pelos demais fazem com que os próprios maratonistas sintam certo status no grupo, sendo, consequentemente, valorizados no meio em que convivem. Uma das entrevistadas ressalta o sentimento de orgulho da condição de maratonista: «... agora não, a corrida está muito divulgada, mas na época não era conhecida assim, aquela que corre ou aquela que faz maratona, e isso é sempre uma coisa... uma pontinha de orgulho. No fundo, as pessoas acabam não falando, mas todo mundo gosta disso.» (D.A., 50 anos).

«Alguém vai puxar»: maratona e solidariedade

A interação entre corredores de maratona pode acontecer de várias formas, seja em momentos que antecedem, como nos treinos, durante a prova ou mesmo depois. Há um espírito de comunidade em que todos se ajudam, seja nos momentos mais tranquilos como nos mais difíceis. Uma das formas de olhar este espírito de comunhão, talvez possa ser através do caráter missão que a maratona apresenta, conforme é analisado por este informante: «... ali você está num desafio, o que está compartilhando ali‌ Há um desafio comum a todos. Aquilo ali une, porque como se fossem todos numa missão de guerra. Sim, essa guerra é individual.» (M.A., 49 anos).

E a solidariedade é decorrência deste espírito de união. Ela acontece também de várias formas e em situações variadas, como nos exemplos a seguir: «Ele (esporte maratona) é solidário, você vê alguém com alguma coisa e carrega junto, eu mesmo sou assim, na hora, vejo alguém, você vai, vão embora! Você está caindo, passa alguém na maratona por você: 'não para, falta pouco', você está sozinho e não está sozinho (...) então se você está numa corrida que está no final, a verdade é que alguém vai te puxar. Você nunca mais vai ver esta pessoa, mas vai te puxar.» (M.D., 49 anos).

O termo «puxar» quer dizer estimular o outro corredor a vencer a dor e continuar correndo para finalizar a maratona: «O corredor é muito unido um ao outro (...) se um machucar um chega próximo, 'espera lá colega, dá para ir', a gente está sempre dando força, é bem interessante.» (C.P., 65 anos).

Há também casos de solidariedade entre corredores, como o seguinte: «Já corri com um deficiente, com uma muleta de madeira. Aí na chegada eu falava para ele não botar a muleta no chão, para levantar a muleta, 'você bota a muleta para cima para todo mundo ver a muleta'» (V., 75 anos, ajudando a um deficiente completar a prova de maratona).

A solidariedade pode também ser sentida entre os participantes e o público, de acordo com Deighton (1992). O informante L.A. revela um exemplo da solidariedade do público de Boston: «E lá é o seguinte em Boston. Imagina você correr numa estrada, você sai de uma cidade lá e vai por uma estrada o tempo todo e o pessoal de Boston dessa cidade se preparam para corrida o ano inteiro. (...) eles saem de suas casas, dos vilarejos e ficam todos assim na beira da estrada e torcem mesmo, torcem violentamente! (...) Aí os caras gritavam para mim, me davam força e tudo mais.» (L.A., 60 anos).

No Rio de Janeiro, numa corrida, em 2013, em que a informante C. de 45 anos participou, ela relata o envolvimento da comunidade do Morro do Alemão, que recentemente havia passado pelo processo de pacificação: «Não houve nenhum conflito durante o percurso, os moradores que nos parabenizaram ficaram nas suas portas, tudo em grupo, entendeu‌ Tudo maravilhado não sei que hora eu passei, eu fui uma das primeiras mulheres, então eu recebi parabéns no percurso inteiro onde tinha população elas jogavam beijo para elas, todo mundo muito feliz» (C., 45 anos, ao correr a corrida na comunidade do Morro do Alemão no Rio de Janeiro).

A maratona como um momento de socialização e de lazer

O tema socialização apareceu nas entrevistas com todos os informantes. Para eles, a atividade de corrida e o próprio treinamento para maratonas podem envolver vários tipos de relações com outras pessoas. Isto é, apesar da corrida em si ser vista como um esporte solitário e individual, quando se trata de correr uma prova de longa distância como a maratona, busca-se o contato, seja por meio de serviços de assessoria esportiva ou simplesmente desejar estar junto com outros corredores durante os vários treinos. Nos próprios eventos de corridas, há espaços disponíveis para que estes grupos (sejam só de corredores ou de assessorias de treinamento) se estabeleçam no local e possibilitem a confraternização entre os próprios corredores e entre estes, os treinadores e o público.

Referem dois entrevistados:

«A maratona tem esse aspecto lúdico sim. Você reúne amigos, sabe, é um pretexto para você estar num evento social». (M. A., 49 anos).

«Esse meio de correr nesse ponto é muito bom, traz uma socialização» (L.A., 60 anos).

Muitos informantes associaram a prática da maratona com lazer. É comum relatos de que a maratona serve como pretexto para viajar, como nos exemplos abaixo:

«A gente busca uma maratona no período de férias que a gente tem, então a gente acaba fazendo turismo» (D.A., 50 anos).

«... Olha que coisa fantástica, tem maratona no mundo inteiro, então a gente escolhe um lugar até que não conhece que é o caso de Istambul (...) e é isso que eu acho um diferencial» (M.D., 49 anos).

Para outros, a experiência da maratona em si já é um passeio, pois não tendo o enfoque competitivo, pode ser uma forma de apreciar a paisagem.

Referem duas entrevistadas:

«Eu vejo assim, a corrida longa para mim eu gosto porque é uma corrida que você vai, é assim. Você dá a largada, você não tem que estar preocupada para que você chegue. Eu vou vendo paisagem, vou curtindo as pessoas que participam, vou curtindo as pessoas que estão dando apoio, tanto de dentro da organização como as pessoas que não correm, que não praticam esporte ou algumas que praticam.» (C., 45 anos).

«Eu gosto até assim ficar olhando para me distrair, vendo a paisagem... vendo as coisas, porque acho isso meio que tira você, como eu não estou mais preocupada com o tempo...» (D.A., 50 anos).

Além disso, o fato de a maratona corresponder a um percurso longo que leva algumas horas para um corredor amador completá-la, permite a experimentação de sensações variadas. Sensações que rementem tanto para a noção de sacrifício, como também sensações que rementem ao prazer, conforme citado por um informante: «Num treino confortável você vai se sentindo melhor e experimenta uma sensação chamado de runners high como se fosse uma loucura, um prazer do corredor e que ele entra num estágio de conforto e paz, mesmo durante a corrida que depois de uma hora ou de uma hora e meia ele está se sentindo melhor do que quando começou.» (A. A., 54 anos).

 

Considerações finais

Alguns resultados acima apresentados merecem ser salientados. Um diz respeito ao imaginário do corredor criado em torno de valores como: uma pessoa que é saudável, que gosta de desafios, que é forte e resistente. Para os entrevistados, ser corredor é estar no caminho deste ideal. Desejam ter experiências que os levem a sentir prazer, orgulho e realização de serem um pouco parte deste imaginário construído.

Para os indivíduos mais velhos, este imaginário vai ao encontro da reflexão de que para um envelhecimento adequado é necessário estar ativo. Se manter «corredor» é trilhar neste caminho de um corpo que envelhecerá de forma não somente saudável, mas que também será forte e resistente. Este resultado vem a corroborar com o de Diogini (2006) em que há um reconhecimento de que a prática do esporte permite maior controle do corpo, direcionando-o para uma condição desejável.

A relação entre a prática da corrida e o avançar da idade foi destacada pelos entrevistados quando comentaram sobre as motivações. Se inicialmente importava o desafio e depois a competitividade, esta última parece ter diminuído sua relevância com a expectativa do avançar da idade. Para os entrevistados mais velhos continuar correndo é para manter-se saudável. Para os mais novos, ao comentarem sobre o futuro, havia uma expectativa de que as motivações poderiam ser diferentes.

A maratona apesar de ser percebida como uma atividade altamente desgastante e de grandes sacrifícios, gera uma sensação plena de bem-estar, quietude e satisfação. A maioria dos entrevistados disseram ter vivenciado um momento de intenso prazer durante a maratona ou durante seus treinos. Tal experiência é decorrência do alto nível de concentração e esforço exigido, mas que, estando bem treinado, é possível suportar. Estas sensações de bem-estar e satisfação permitem levar ao estado de realização e associar a maratona como uma experiência que também é lúdica.

A socialização entre os corredores também merece ser destacada. A busca por lugares para ter convívio social é uma das necessidades dos indivíduos mais velhos (Rosenbaum, 2006). Os eventos de corrida e os treinos são formas convenientes de suprir esta demanda. Ademais, estes eventos têm a capacidade de reunir pessoas em torno do mesmo interesse, o que intensifica ainda mais um senso de comunidade e pertencimento (Thomas et al., 2013; Shipway e Jones, 2007). E estes valores de socialização são percebidos mais fortemente com o avançar da idade.

Diante das experiências relatadas pelos entrevistados com relação a maratona, revelam-se os desejos de conquistar numa única experiência sensações como prazer, sacrifício, orgulho e realização; de contribuir para manter-se saudável e se divertir, de estar com amigos e viajar. Por meio da corrida e da maratona, abre-se um leque de oportunidades que envolvem basicamente três pilares: a socialização, o lazer e a qualidade de vida.

Estes pilares podem ser a base para a conquista de consumidores de maratonas pelo setor de turismo. Entretanto, estes consumidores devem ser vistos como grupos heterogêneos. Enquanto para corredores de meia-idade, a dedicação ao esporte exige muita negociação com outras áreas como família e trabalho, para os mais velhos a disponibilidade de tempo é algo que conta a favor. Por outro lado, o desafio torna-se mais penoso. Com isto, os pacotes turísticos que visam promover estas experiências podem se ajustar ao perfil destes corredores. Como por exemplo, segmentar corridas, não somente pela distância, mas por horários e percursos diferentes. Promover maior estímulo àqueles que correm por competitividade por meio de premiações. Buscar cenários atraentes e percursos leves para aqueles que preferem o estímulo à saúde.

As principais limitações desta pesquisa dizem respeito à natureza exploratória da investigação, pois não se pode promover generalizações. Entretanto, os temas levantados permitem agregar novos conhecimentos desta experiência de consumo.

Com relação à pesquisas futuras, sugere-se entender em maior profundidade as motivações e benefícios gerados pela corrida para consumidores de mais idade, destacando as diferenças de gênero.

 

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